A psicanálise só fala da infância. Será?
- Flávia Pagliusi
- 11 de fev. de 2024
- 2 min de leitura

É muito comum a ideia de que a psicanálise trabalha apenas com os acontecimentos passados, se concentrando nos assuntos da infância e na relação com nossos pais ou cuidadores, principalmente. Mas será que é assim mesmo?
O que acontece no consultório da analista é que, ao narrar nossas memórias, pensamentos e sentimentos do passado, do presente ou de expectativas e medos de futuro dizemos das fantasias que dão forma ao nosso interno e à maneira como nos relacionamos com o nosso entorno. Com isso, buscamos nos tornar um pouco mais conscientes das complexas camadas que envolvem nossas escolhas e ações e que, não raro, nos fazem entram num ciclo de repetições (quem nunca ouviu frases como: "Eu tenho dedo podre para relacionamentos!", "Fulano está sempre endividado!", "Beltrano nunca se mantém num mesmo emprego!"). Esses "caminhos conhecidos", por assim dizer, são fruto de toda essa relação imbricada que vamos construindo com o mundo e as pessoas a partir dessas nossas fantasias. E como é que a gente as constrói?
Nesse sentido, aqueles anos da infância são extremamente importantes, pois são nossos primeiros passos no mundo. A interação com os pais ou cuidadores, com o alimento, com os cuidados de higiene, a dinâmica das relações familiares, se tivemos ou não irmãos, em que tipo de casa moramos e uma infinidade de aspectos únicos na vida de cada um. E daí ser comum escutar que a psicanálise trabalha muito com o passado! No entanto, o que nem sempre é fácil perceber é que, se todas essas experiências arcaicas moldaram a maneira como nos colocamos no mundo hoje, então ao falarmos sobre nossas atividades cotidianas, o passeio do final de semana, a dinâmica de trabalho e as picuinhas com os colegas, os romances e dates de aplicativo, nossas impressões sobre a novela ou a série do momento e mesmo sobre o que sonhamos e pensamos do futuro estamos necessariamente falando dessas experiências primitivas. De certa forma, estamos repetindo essas experiências!
Sobre isso, através de suas pesquisas e estudos, Freud postulou que o nosso inconsciente tem um jeito diferente de funcionar. Nele, o tempo cronológico como conhecemos não faz muito sentido, o que significa dizer que uma experiência infantil é constantemente atualizada no presente. É aquele antigo jargão de que escolhemos parceiros e parceiras românticos com características parecidas às dos nossos pais ou cuidadores, por exemplo. Claro que a construção que se dá é bastante mais complexa e nem sempre tão direta e fácil de identificar, mas dá conta de ilustrar a ideia de que o infantil está aqui e agora, operando em nosso dia a dia!
Portanto, em uma sessão de análise, não é necessário falar apenas sobre o passado. A regra fundamental, na verdade, é uma só: falar o que lhe vier à mente com o mínimo de censura possível!